Refletindo sobre esse dia, me lembrei das histórias que minha avó me contava da época da libertação oficial dos escravos, para quem morava no interior do pantanal mato-grossense.
Meu bisavô era um sueco que se cansou do frio, partiu para o porto mais próximo e pegou o primeiro navio que o aceitou como trabalhador, vindo parar no Brasil, um lugar que ele nem tinha ouvido falar. Chegando no porto de Santos ele conseguiu trabalho com uma equipe que estava vindo para Mato Grosso instalar fios de telégrafo, isso por volta de 1870.
Chegando no pantanal, ele se encantou com a terra, largou a equipe, se aprofundou mais para o interior, casou-se com Francisca, uma descendente de indígenas e teve muitos filhos, a quem não ensinou o sueco, mas criou com uma visão bem mais avançada do que as pessoas que moravam naquele lugar tão distante de tudo. Ele trabalhava em uma metalúrgica na distante Suécia e começou a fabricar facas com uma mistura que ele chamava de aço, coisa que ninguém conhecia por ali e por isso suas facas eram muito procuradas e valorizadas.
Minha avó nasceu em um ambiente onde ainda existiam muitos escravos, mas meu bisavô abominava a escravatura. Ele nunca teve escravos, sua orientação trazida de um país com consciência mais adiantada não aceitava essa situação e, por isso, ele contratava trabalhadores para ajudá-lo.
Muitos anos depois, quando minha avó já era bem velhinha e morava conosco, ela gostava de contar as histórias que viveu. Ela nasceu uns 5 anos antes da libertação dos escravos e ainda lembrava da festa que aconteceu no seu pequeno povoado quando a notícia da libertação, depois de quase três meses, finalmente chegou por lá. Os libertos saíram para a rua, dançaram, cantaram, iam nas casas libertando aqueles que os “donos” se negavam a soltar e, depois de algum tempo, eles pararam, se olharam e ficaram pensando o que iam fazer. Alguns voltaram para as casas de onde saíram, outros se reuniram e foram para o mato, tentar sobreviver. Meu bisavô e alguns outros habitantes do povoado com mais mente aberta, e até mesmo negros anteriormente alforriados, acolheram e contrataram alguns, mas muitos ainda permaneceram muito tempo nas casas e fazendas vivendo ainda como escravos, por não terem condições de suporte e conhecimento para conseguirem mudar suas vidas. Já havia, talvez, uma espécie de “síndrome de Estocolmo” entre aos alforriados e seus antigos donos, devido a segurança física e emocional que eles consideravam ter e o medo de uma mudança tão radical.
Muito anos depois, meu pai, neto deste sueco, com olhos azuis iguais ao do avô, casou-se com minha mãe, filha de baiana, cujo avô tinha sido escravo, sendo eu, resultado de toda essa mistura, assim como tantos outros brasileiros. Por isso dessa história eu fico com duas reflexões principais. Primeiro: Por que um país como o nosso, com toda essa mistura, tem tanta dificuldade de aceitar e acolher a nossa própria diversidade? E a outra, muito mais séria ainda, é pensar nesses negros libertos desta forma, sem suporte, sem rumo, sem nenhuma orientação, soltos na vida como crianças que precisavam aprender a viver de forma autônoma e ainda com a força do preconceito e do racismo sobre eles, impedindo aprendizados, tolhendo oportunidades para uma busca de igualdade social.
Aquela imagem que minha avó me contava dos negros libertos em um estado de muita alegria e depois de confusão e espanto com a nova vida, me passa um sentimento profundo de empatia pela luta da comunidade negra, representada neste dia da consciência negra, que precisa ser de reflexão para todos nós brasileiros.
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