Freio de arrumação!

Quando morei em Salvador aprendi um termo que nunca mais esqueci, e passei a usar, que é “freio de arrumação”. Significa aquele momento no ônibus lotado em que o motorista precisa frear com força e parece que tudo se ajeita depois disso. Hoje me peguei achando que o Covid-19 é esse nosso “freio de arrumação”.

Dividimos o tempo em séculos e, talvez, por causa disso, cada século foi criando sua própria identidade. O interessante é que quando o século começa, nós vamos vivendo pelos parâmetros e estruturas do século anterior, mesmo já tendo inovações que poderiam mudar tudo o que estamos fazendo. Falta coragem e alinhamento para mudar as coisas ao redor do mundo, até que algum episódio aconteça e nos obrigue a fazer as mudanças necessárias. Foi assim com a revolução industrial no século XIX; foi assim com as grandes guerras no século XX, e agora pode ser o mesmo com a pandemia no século XXI.

Thomas Davenport em seu livro Reengenharia de Processos, conta que as indústrias no final do século XIX eram feitas para trabalhar com o vapor e por este motivo, as máquinas de tear, por exemplo, eram dispostas ao redor de um grande tubo, por onde passava o vapor, que fazia as máquinas funcionarem. Com a invenção da energia elétrica, as máquinas foram desligadas do vapor, mas continuaram ao redor destes tubos circulares, mesmo já podendo serem dispostas de outra forma. Levou bastante tempo para perceberem que poderiam montar linhas de produção, colocando as máquinas em sequência e começaram a construir fábricas com outras estruturas. O mesmo aconteceu com as tecnologias de comunicação, naval, armamentista, dentre outras, durante e após o período das grandes guerras, especialmente a segunda guerra mundial. Elas já existiam, ou estavam planejadas, ou esquecidas em algum lugar e, com a guerra, os países foram obrigados a adotá-las, independentemente dos interesses comerciais e políticos existentes por trás de sua utilização.

Tenho a impressão de que estamos vivendo esta mesma situação hoje. As guerras atuais, por serem tecnológicas e pontuais, não abalam mais as estruturas do mundo, foi preciso um inimigo comum e poderoso, como uma pandemia, para que os países tivessem que tomar frente para decisões arriscadas e necessárias de isolamento de pessoas e grupos, ao mesmo tempo que compartilham informações. Neste momento, o que nos permite isolar, são as tecnologias já disponíveis, até então não utilizadas em sua totalidade, mas que agora vão tornar nossas vidas possíveis.

A quanto tempo nos perguntamos, por que a educação não muda sua forma arcaica, mesmo com toda a estrutura tecnológica disponível? Por que continuamos ocupando espaços físicos caros e ambientalmente inadequados, quando podemos desenvolver grande parte de nossas atividades intelectuais por home office? Por que a medicina não atua via internet em larga escala? Por que os governos continuam inchados, se já seria possível transferir grande parte dos serviços públicos  para um modo virtual? Pois é, agora vamos ter que usar destas ferramentas.

Mas não é só a tecnologia que vai mudar, a economia também vai sofrer ajustes. Vínhamos numa corrida desenfreada de quem ganha mais, quem investe mais, quem compra mais, quem viaja mais e aumentando o ganho dos mais ricos e a distância destes com os mais pobres e, de repente, veio o “freio de arrumação” econômico, causado pelo Covid-19. O que vai acontecer depois que o nosso “ônibus” andar novamente? Não sabemos. Muitos podem estar de pernas para o ar, alguns podem até ter saltado, ou caído, do ônibus, mas o fato é que a economia não será mais a mesma. Como diria Milton Nascimento, na voz de Elis Regina: “sei que nada estará como está, amanhã ou depois de amanhã”.

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